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Foto: Rafa Eleutério

A Morte da Bonitinha

De Natália Coehl (Este texto está dentro do livro: BRUNO, Eduardo. Imaginários Urbanos: performance entre o público e o privado. Fortaleza, CE. Expressão Gráfica e Editora. 2019.)


A vista pro mar me acalma.
A vista pra cidade me apavora.

 

 

A Pesquisa Pesquisa

 

 

A Bonitinha é um corpo feminino privilegiado, que consegue sobreviver no sistema patriarcal sendo conivente a ele, pois sua composição estética é a forma que o agrada. Tendo um corpo padrão, a Bonitinha também precisa adequar a sua postura social para se encaixar no movimento tradicional desta estrutura enrijecida. Além dos padrões estéticos, existem as que já nasceram em berço de ouro, estas vivem em
suas bolhas sem saber o que existe fora dela. A Bonitinha é um dos alicerces que sustentam o patriarcado. Os sistemas educacionais colocam a Bonitinha num lugar de se adequar a ele como estratégia de sobrevivência, porém essa percepção se dá em camadas muito profundas, e o que sobra na superfície é a tentativa de viver em busca de um conto de fadas, onde a Bonitinha é salva por um príncipe encantado.

O concreto, simbólico do movimento patriarcal capitalista, invade a cidade de forma opressora, sufocando o direito de respirar dos que trabalham para construí-la. O conto de fadas não existe para todos, apesar de ser vendido que, através de muito esforço, todos podem alcançá-lo. Essa estrutura é construída de baixo pra cima, embora a ideia venha de cima para baixo. E se optarmos por não construir, destruir esses alicerces, boicotando o que nos oprime, quebrando nossos muros internos, abrindo espaço para olhar o outro, abrindo mão de nossos privilégios?

A morte para essa pesquisa não é o contrário de vida, mas sim o caminho para encontrá-la. Ela é o símbolo para libertação, o fim de um corpo estereotipado e padronizado. Pensando assim, a morte aqui é o reconhecimento da pessoalidade, é a quebra do muro social para assim estar aberto para o encontro com o diferente. Para matar a Bonitinha, se faz necessário um olhar profundo e atento para si, para perceber as sensações que este corpo traz e, assim, investigar a raiz da Bonitinha e o que ainda vive, dessa ancestralidade, em nós. Esta é uma possibilidade de processo de desconstrução de si. Penso que talvez os processos de desconstrução do corpo devam estar na rua, no fora, no lugar onde os encontros inesperados acontecem. Talvez assim, consigamos liberar espaços, “desconstruir estereótipos, desmontar sistemas criados por uma cultura da não vida” (Maria Thereza Azevedo - LEAL, Maria Lucia, ALCURE, Adriana Schneider, BACELLAR, Camila Bastos e AZEVEDO, Maria Thereza. Pedagogias feministas e de(s)coloniais nas artes da vida. Disponível em : <http://www.seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/36982 >. Acesso em: 4 out. 2017. )


O programa performativo programa performativo


Por que vocês estão carregando pedras?
Uma criança perguntou.

Como programa ritualístico para A Morte da Bonitinha, Marcelle Louzada e eu resolvemos carregar, cada uma, um pedaço de concreto, que pesavam aproximadamente 20 quilos, da Praça Portugal, situada no Bairro Meireles, até o Poço da Draga, que se localiza a quase 4 km de distância dessa praça. Este caminho liga dois lugares muito diferentes entre si. 

 

Meireles é um bairro onde mora a alta classe social de Fortaleza/CE, nele estão localizados os condomínios de luxo, as lojas caras, os carros blindados, os muros altos e uma grande quantidade de câmeras de segurança. Os moradores deste bairro raramente andam a pé pelas ruas, normalmente eles saem em seus carros para ir à padaria, que fica a 3 quadras de suas residências. A Praça Portugal fica situada no coração deste bairro.

O Poço da Draga foi povoado por pescadores, estivadores e trabalhadores da alfândega. As pessoas que atravessam esta área, talvez não percebam que exista moradia, pois a localidade se encontra escondida rodeada por galpões. Existe ali, um enorme movimento de especulação imobiliária e turística, que tem o intuito de tirar os moradores de lá, transferindo-os para a periferia da cidade, para dar inicio ao projeto “Fortaleza 2040”, que consiste em construir prédios daquela área até a Barra do Ceará. Uma ação higienizadora e colonizadora.

O concreto entra para nós como o simbólico do patriarcado, ou o peso da consciência dos privilégios da Bonitinha. Sentir esse peso é a grande questão deste trabalho e, ao sentir, observá-lo para depois matá-lo. Dói ser conivente a uma estrutura que vive e cresce a partir do sangue e suor de toda uma massa oprimida por não encontrar novas possibilidades de existir fora do sistema capitalista. É aí que entra o que nos une entre os diferentes caminhos do feminismo, no sentido de saber quem é o nosso inimigo, e como cada uma age com ele. Para a Bonitinha o caminho é matar privilégios, encontrar o perigo e se libertar da proteção e do conforto que o patriarcado dá, em abundância, cheio de sangue nas mãos. Dissolver, romper, quebrar os alicerces que sustentam essa estrutura e depois assisti-la ruir. 

Levamos 3 horas para chegar ao Poço da Draga. Nesse caminho encontramos muitas pessoas que nos perguntavam por que estávamos carregando pedras. Outras disseram que o peso estava leve. Sim, estava leve, é muito mais pesado, basta olhar em volta e perceber o que construímos até agora. No caminho encontramos muitos prédios e, a medida que nos aproximávamos do Poço, a paisagem ia se transformando, mostrando um grande monstro de olhos sedentos e cheios de anseios para ocupar aquele espaço. Um dos projetos criados é que o Poço da Draga vire um estacionamento para o futuro e duvidoso aquário em construção embargada.

Nas palavras de Virginie Despentes, retiradas de seu livro Teoria King Kong, ela pontua que, “não escreveria o que escrevo se fosse linda, linda o suficiente para mudar a atitude de todos os homens que cruzam o meu caminho” (DESPENTE, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo, SP. Editora N-1. 2016.). Penso que o caminho para a desconstrução do corpo da bonitinha é bem árduo e tem uma oposição ferrenha que é a venda de um corpo feminino estereotipado. A camada superficial da pele é apenas a beira do precipício. Quando vamos pular para encontrar as nossas profundezas, o que nos motiva na vida, o que é existir? Como ter coragem para saltar em águas desconhecidas? O final do percurso se deu ao nos encontrarmos com o mar.

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